1 de abr. de 2010

Ilhas míticas do escritor Wilson Bueno

Colagem de Adriana Peliano



"Alice nos ata e nos faz reacreditar na esperança do inusitado, da surpresa, do gozo literário. E isso é lindo. Uma coisa assim como Italo Calvino, outra de minhas obsessões. Já lestes "Seis propostas para o próximo milênio" ou "As cidades invisíveis"? Ah, aproveito pra te mandar uma de minhas "ilhas". Compus um livro inteiro delas. Mando-te, de coração, Florívia." 

Wilson Bueno


Florívia, Lídia, Ládiva, Py e Eólia estão escritas na memória ancestral e grafadas na lenda antiga, em contos e racontos.   


 Florívia 

 Quando você pensar em conhecer Florívia, ilha de paz e remansos em meio ao turbulento Oceano, pense, antes de partir e examinar, ainda outra vez, velames e cordas, âncoras, víveres e instrumentos de bordo, pense em tudo o que sua generosidade ofereceu ao mundo. Não se decepcione nunca contigo mesmo antes de embarcar a Florívia. 


Rememore, minucioso, antes de partir, o que houve de coragem ou desassombro a cada vez que a vida lhe exigiu , não o silêncio dos carneiros a pastar as pradarias ou a sombra quieta das árvores aonde você deitou o seu sono paciente. 


Pense, antes de partir, se você já não fracassou, de modo humilhante como podem ser algumas espécies de fracasso. Sobretudo ali, pense, onde seu braço foi curto, e desprezível a mão que se encolheu ao bolso a negar o que o vigor do corpo poderia oferecer de auxílio ou socorro. Pense, antes de partir, na covardia envergonhada que o impediu de salvar alguém ao lado prestes a ser engolido pela garganta do abismo. 


Em Florívia não crescem cactos e as praias douram-se ao sol de maio feito um poema todo construído de cochicho, quando, vizinho da noite, o entardecer é só uma extravagância das tintas do céu. Em Florívia dorme-se muito cedo, ainda antes dos passarinhos. 


Conversar com as ondas ou com a mudez das conchas e dos caramujos é prática comum em Florívia. Ainda mais comum do que os longos interrogatórios com que os peixes saciam a curiosidade não-pequena, a medir o tamanho da fé dos recém-chegados. 


São bem suaves as noites de Florívia. Ausente de nuvens, o céu é só um drapeado de estrelas que cintilam e reperguntam às ondas, à faixa de areia das longas praias brancas, de onde vem o forasteiro. E, principalmente isso, não se assuste: se indagarem o que você traz no coração. Se você uivou na noite porque era tarde e a solidão o pôs assim num vácuo sem remédio, não, não pense, não vá pensar, a sua arrogância triste, de que, só por isso, você é merecedor de Florívia e de suas escarpas por onde sobem, imensas, monstruosas rosas vermelhas. Se foi, por sua vez, um ser dedicado a si mesmo, a iludir-se de que esse era o melhor modo de doar uma singularidade ao mundo, também não parta já a Florívia. 


Embora a vilania e a derrota, o suor da noite grande e o medo andando as paredes da casa, aranha peluda; embora o suplício da espera, melhor não embarcar a Florívia. Lá, no ancoradouro da ilha, em seu porto onde rinocerantes dançam cantigas de boas-vindas e colibris voejam ao redor dos desembarcados feito um enxame fosforescente, só te pedirão uma senha. 


Mas aí é que mora o maior mistério de Florívia: ninguém até hoje soube a senha, ao certo. Os que lograram acertar, por pura sorte acertaram a senha a esmo. Mas tinham, dizem, nas mãos -na concha das mãos-, a luz em prata de uma única lágrima. Vertida, contam por aí, face o espanto de sentir a coragem, gume afiado, atravessar de repente toda uma floresta de medos. 


Florívia é longe, muito longe, e reverbera em meio ao grande Oceano, nas noites de lua cheia, a sua existência estrelada."



Presto minha homenagem para


Wilson Bueno no evento "Um dia, Alice 2010". 

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