4 de jan. de 2009

Barba Azul | Blue Beard


AS INFERNAIS MÁQUINAS DE DESEJO DO BARBA AZUL [2001]
THE INFERNAL DESIRE MACHINES OF BLUE BEARD

Adriana Peliano



Jogo intertextual a partir da estória do BARBA AZUL por Charles Perrault

Intertextual game of Charles Perrault's BLUE BEARD

All pictures by Adriana Peliano
















































Releituras e Interpretações da Lenda do Barba Azul



Barba Azul, um conto de fadas escrito por Charles Perrault no século XVII, impressiona como um filme de terror e suspense, prenunciando as fantasias do século XX sobre os serial killers. Juntamente com Chapeuzinho Vermelho, por seu forte teor de violência e erotismo, Barba Azul é entre os contos clássicos aquele que apresenta o material adulto mais perturbador. Como anuncia Maria Warner Barba Azul, ou o marido Ogro, é um bicho-papão que fascina e atrai as suas vítimas tanto quanto o seu público: o nome em si já desperta associações com sexo, virilidade e desejo. A câmara sangrenta, que sua última esposa abre com a chave que ele a proibira de usar, revela os cadáveres das ex-mulheres do Barba Azul, alertando-a para a iminência da sua própria morte. A chave, com sua nódoa de sangue que não se deixa limpar, denuncia então a esposa errante ao Ogro assassino: a chave é um símbolo da iniciação feminina, associada à perda da inocência infantil e da virgindade.

Seguindo a leitura de Marin Warner, abarba é a marca do bode e dado o caráter libidinoso e diabólico desse animal, marca o seu parentesco com os sátiros e com outras personificações clássicas da luxúria como o Deus Pã e o próprio Demônio. Completamente fora de moda na côrte do Rei Sol, a barba do vilão de Perrault sinalizava um estranho, um marginal, um libertino. A palavra barba já se refere à barbárie e ainda tinginda de azul, intensifica o horror provocado pela sua aparência. A cor azul é a cor da profundeza ambígua, ao mesmo tempo do céu e do abismo e codifica o caráter terrível do Ogro, do seu castelo e de suas ações. O azul é a cor do lado sombrio, do maravilhoso e do inexplicável, do conhecimento e da melancolia, do raro e do inexperado.

Entretanto, um dos aspectos mais peculiares da conhecida história do Barba Azul é que a narrativa se concentra não nos assassinatos em série do Barba Azul, mas no ato de desobediência da esposa que entra no quarto proibido. Depois de Perrault a história chegou inclusive a ganhar como subtítulo: “os efeitos da curiosidade feminina” para identificá-la com contos admonitórios sobre a perversidade inata das mulheres. Conforme assinala Marina Warner no livro Da Fera à Loira, a árvore genealógica da heroína dessa história a aproxima tanto de Pandora, que abriu a caixa contendo todos os males, quanto de Eva, que comeu o fruto proibido. Ainda nessa relação, a câmara secreta seria como a caixa de Pandora, ou a árvore do conhecimento do bem e do mal e o Barba Azul por sua vez, desempenharia pelo menos dois papéis em sua própria história: por um lado o do deus ou patriarca autoritário cujas ordens devem ser obedecidas a qualquer custo e por outro, o da serpente que seduz despertando a curiosidade e o desejo, que provocarão uma desobediência que será punida violentamente.

Os Contos de fadas têm significados em muitos níveis. Mircea Eliade (in Bettelheim: 1996) os descreve como modelos para o comportamento humano que dão significação à nossa vida. Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material psicológico reprimido está subjugado nos mitos e contos de fadas e como estes se relacionam aos sonhos e devaneios. Entre estes comentadores, Bruno Bettelheim identifica na história de Barba Azul o confronto com o mistério da sexualidade que, ao dramatizar de modo tão sangrento o pavor da defloração, ajuda a abrandá-lo.

Os psicanalistas jungianos, por sua vez, frisam que as figuras e os acontecimentos dos contos de fadas estão de acordo com fenômenos psicológicos arquetípicos e simbolizam a necessidade de se atingir um estado mais elevado de auto confiança e realização, numa renovação interna que é conseguida à medida que as forças inconscientes tornam-se disponíveis para serem trabalhadas pela mente consciente.

Dentro de uma abordagem jungiana, em Mulheres que correm com os lobos, Clarissa Pinkola Estés enfatiza que os contos de fadas compreendem o drama da alma das mulheres, promovendo extensas escavações psíquico-arqueológicas nas ruínas do mundo subterrâneo feminino. Nesse sentido entretanto, ela denuncia o processo histórico de domesticação dos contos de fadas, de forma que se perderam muitos dos contos femininos que continham instruções sobre o sexo, o amor, o casamento, o parto, a morte, a transformação, que explicavam mistérios antigos e rituais de iniciação. Da maioria das coletâneas de contos de fadas e mitos hoje existentes foi expurgado tudo que fosse escatológico, sexual, perverso, feminino, iniciático, ou que se relacionasse às deusas, que representasse a cura para vários males psicológicos ou que desse orientação para o alcance de êxtases espirituais.

As narrativas míticas são portanto representações simbólicas de verdadeiros mapas iniciáticos. O conto do Barba Azul fala do despertar e do crescimento interior feminino. Ele nos ensina o que devemos fazer com o ferimento que não para de sangrar. Ele também nos mostra a necessidade de penetrarmos nas trevas para que possamos renascer num outro nível de consciência. A figura do Barba Azul representa neste contexto o carcereiro, o predador interior, simbolizando os padrões e as forças internas destrutivas. Compreender a natureza do predador significa portanto amadurecer, tornar-se menos vulnerável à ingenuidade, à inexperiência e à insensatez. Enquanto a chave é o acesso ao conhecimento interior, os segredos mais profundos e obscuros da psiquê, o papel do Barba Azul é o de tentar proibir a mulher de ter acesso a ele, tomando assim consciência de si mesma e do Outro.

Entretanto, cabe ressaltar a natureza intrinsecamente ambígua dos contos de fadas, passíveis de múltiplas interpretações. Para as mulheres e para as meninas, em particular, identificadas com as heroínas dessas histórias, os contos de fadas assumem uma condição contraditória de serem ao mesmo tempo uma clausura espiritual e um modelo de bom comportamento, fragilidade e submissão e por outro lado, um fantástico grito de guerra em seu poder de tranformação e em seus impulsos emancipatórios. Em épocas e contextos diferentes, as mesmas histórias podem suportar a ideologia dominante ou articular o desejo de mudança. Como máquinas de desejo, os contos de fadas reforçam as normas socias e configuram máscaras e papéis sexuais ao mesmo tempo que mostram múltiplas possibilidades de mudança e de transformação.

Nas leituras contemporâneas da história, não é mais o castigo sobre a desobediência que está em jogo na história do Barba Azul, mas a necessidade interior de entrar no quarto proibido. A heroína precisa conhecer sobre a natureza do marido e sobre a própria sexualidade e o seu mundo oculto e sombrio para poder então triunfar sobre a morte e a destruição. Ação e coragem e não apenas curiosidade faz com que ela entre no quarto probido. Apenas depois de enfrentar a sua própria sombra e descer ao inferno, reconhecendo também a sua própria cumplicidade no papel de vítima e objeto do desejo do Ogro, a mulher pode ser dona e sujeito do próprio desejo.

O lado excessivo, exaltado e sádico dos contos de fadas, nos quais se destaca o Barba Azul, tornou-os ainda mais obrigatórios nas últimas décadas do século XX, especialmente para os adultos. Escritores criativos têm se inspirado nos contos de fadas recriando essa matéria-prima através de uma manipulação política, erótica ou meta-linguística. Reler textos conhecidos implica na urgência de novas questões, novas práticas e desejos, o que tem sido responsável pela formação de uma forte linhagem de releituras contemporâneas de contos de fadas voltadas para o público adulto, através de autores e artistas que se recusam a se submeter à autoridade das convenções e estereótipos, revisando esses contos clássicos e se apropriando deles de forma questionadora ou mesmo subversiva.

A lenda do Barba Azul inspirou um impressionante conjunto de obras nos dois últimos séculos; desafiando grandes artistas a reinterpretar a sua história e a das suas esposas, em diferentes abordagens e suportes artísticos. Béla Bartok escreveu uma ópera sobre o tema; Pina Bausch adaptou a história para o teatro; no filme O Piano (de Jane Campion) também está implícita uma releitura do mito; Cindy Sherman ilustrou O pássaro de Fichter (a versão dos irmãos Grimm para a história do Barba Azul) em um livro de contos de fadas para adultos. Esses são alguns dos exemplos mais marcantes.

Escritoras como Anne Sexton, Margareth Atwood e Angela Carter deram um tratamento renovado aos contos de fadas. Angela Carter em especial tornou-se nos últimos anos uma referência obrigatória e símbolo da escrita pós-moderna e experimental. Em alguns de seus contos foi baseado o filme Companhia de Lobos (1984) de Neil Jordan, do qual ela foi co-roteirista. Suas histórias investem contra as boas mocinhas. Contos sobre o Barba Azul, Chapeuzinho Vermelho e A Bela e a Fera no livro The Bloody Chamber propõe heroínas que tomam a consciência e o controle sobre o próprio desejo, fazendo aflorar o conteúdo sexualmente latente dessas histórias. No ensaio The Sadeian Woman (in Carter: 2000) Carter define dessa forma a condição feminina nos contos de fadas: Ser objeto de desejo é ser definida pela voz passiva. Existir na voz passiva é morrer na voz passiva; ou seja, ser morta. Essa é a moral que o conto de fadas reserva para a mulher perfeita.

Como mostra Cristina Bacchilega, enquanto os contos de fadas tradicionais estabelecem modelos e padrões de comportamento, as releituras pós-modernas desses contos buscam explicitar e subverter seus mecanismos e artifícios.Transformar a política do desejo contruída nos contos de fadas significa conhecê-los e confrontá-los, mais do que simplesmente rejeitar o universo desses contos como gênero histórico que configura e aprisiona em estereótipos o papel social e sexual das mulheres. As heroínas das histórias do século XX ( e agora do século XXI) sobre casamentos com monstros e feras não os rejeitam mais: desafiam os padrões dominantes e recebem com satisfação e consciência as descobertas iniciáticas que o casamento e a união sexual lhes trazem. Nessa leitura a última esposa do Barba Azul personifica neste contexto a revolução radical da sexualidade iniciada no século XX, expressando para nós a nova mulher que desvenda, reconhece e expressa o seu mundo interior assim como os seus desejos mais profundos.



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


BACCHILEGA, Cristina. Post Modern Fairy Tales: Gender and Narrative Strategies. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1997.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CARTER, Angela. O Quarto do Barba Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
KOLBENSCHLAG, Madonna. Adeus, Bela Adormecida: A revisão do papel da mulher nos dias de hoje. São Paulo: Saraiva, 1991.
Sem autor. Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
MENDES, Mariza B. T. Em busca dos contos perdidos: O significado das funções femininas nos contos de Perrault.
São Paulo: Unesp, 1999.
MUTHESIUS, Angelika e Burkhard Riemschneider / editores. El erotismo en el arte del siglo XX. Taschen, 1992.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
SEXTON, Anne. Transformations. Boston: Houghton Mifflin Company, 1971.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira. Sobre Contos de Fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ZDENEK, Felix e Matin Scwander / editores. Cindy Sherman: Photographic Work 1975 – 1995. Hamburg: Schimer Art Books, 1996.

2 comentários:

Márcio Vito disse...

Estudando por aqui.

Márcio Vito disse...

Estudando por aqui.