3 de jan. de 2009

As Máquinas de Desejo de Angela Carter


Exposição no Centro Brasileiro Britânico
 11º Festival da Cultura Inglesa
São Paulo, 2007



ADRIANA PELIANO e NAZARENO RODRIGUES


"Os contos de fadas recriam o mundo segundo a imagem do desejo."
Marina Warner









Fotos Eduardo Ortega





Nazareno e Adriana Peliano são artistas plásticos que vêm trabalhando nos últimos anos em estreita relação com a literatura, com especial atenção para o universo das narrativas dos contos de fadas. Nesse projeto se reúnem para prestar homenagem à obra da escritora inglesa Angela Carter, numa instalação multimídia que dialoga intimamente com a obra da autora em sua releitura crítica, poética e erótica de contos de fadas clássicos como “Chapeuzinho Vermelho”, “A Bela e a Fera” e “Barba Azul”.

A instalação configura uma “floresta” encantada de cabelos, cortinas, saias, maçãs, cheiros, vozes e metamorfoses. Grandes saias de crinolina inspiradas no período vitoriano, também conhecidas como “cage crinolines” traduzem o conflito das heroínas das histórias de Carter, em busca da liberdade do desejo, questionando as armadilhas que os contos de fadas reservam para a mulher perfeita e domesticada. As maçãs e os cabelos possuem um forte caráter mágico e simbólico, como imagens do desejo. Os longos cabelos da heroína aprisionada são também uma presença marcante no universo desses contos.

Em baixo de cada saia pode-se ouvir narrativas de fragmentos das estórias de Carter, aproximando o público do universo literário da escritora através de uma fonte oral, origem primordial dos contos de fadas. Sons de floresta habitam o espaço, criando uma paisagem de sonho e fantasia com luzes, odores e ruídos. Nesse ambiente, o mundo domesticado das belas heroínas loiras se contrapõe ao mundo selvagem das florestas e das feras peludas, numa viagem de armadilhas e metamorfoses, segredos escondidos atrás das cortinas e revelados debaixo das saias.


“As árvores estremecem com um som como de saias de tafetá de mulheres que se perderam nos bosques e desesperadamente procuram uma saída. (...) As florestas fecham-se e voltam a fechar-se como um sistema de caixas chinesas que se abrem para dentro uma das outras; as perspectivas íntimas da floresta alteram-se indefinidamente ao redor do intrometido, do viajante imaginário que não para de andar em direção a algo inventado que perpetuamente se afasta.”
Angela Carter








"Fairy tales recreate the world in the image of desire."

Marina Warner


Desire Machines of Angela Carter

Nazareno and Adriana Peliano are visual artists that in recent years have been working in close relationship with literature, paying special attention to the universe of the narratives of fairy tales. In this project they have come together to pay homage to the work of the English writer Angela Carter, with a multimedia installation that sets up an intimate dialogue with the work of the author in her critical, poetic and erotic rereading of classic fairy tales like “Little Red Riding Hood”, “Beauty and the Beast” and “Blue Beard”.

The installation forms an enchanted “forest” of hair, curtains, skirts, apples, smells, voices and metamorphoses. Large crinoline skirts inspired by the Victorian period, also known as “cage crinolines”, translate the conflict of the heroines in Carter’s tales, in search of the liberation of desire, questioning the traps that fairy tales reserve for the perfect domesticated woman. The apples and hair possess a strong magical and symbolic character, as images of desire. The imprisoned heroine’s long hair is also a striking presence in the universe of these tales.


From under each skirt can be heard narratives of extracts from Carter’s tales, bringing the public closer to the writer’s literary universe through an oral source, the primordial origin of the fairy tales. Forest sounds inhabit the space, creating a landscape of dream and fantasy with lights, smells and noises. In this ambience, the tamed world of the beautiful blond heroines is contrasted with the savage world of the forests and naked wild beasts, on a journey of traps and metamorphoses, secrets hidden behind the curtains and revealed beneath the skirts.


“The trees stir with a noise like taffeta skirts of women who have lost themselves in woods and hunt round hopelessly for the way out. (…) The woods enclose and then enclose again, like a system of Chinese boxes opening one into another; the intimate perspectives of the wood changed endlessly around the interloper, the imaginary traveller walking towards and invented distance that perpetually receded before me. It is easy to lose yourself in these woods.” Angela Carter



CRÉDITOS | CREDITS


Criação e realização | Conception and production 

Adriana Peliano e Nazareno Rodrigues

Textos | Texts
Angela Carter

Desenho sonoro | Soundtrack
Paulo Beto

Vozes | Voices

Elizabeth Chamas (english), Geanine Marques, Márcia Nunes e Tereza Cavalcanti Vasques

Confecção de figurinos e cenários | Set design and costumes manufacturing
Cassio Brasil

Atrizes | Actors
Letícia de Paula, Marina Ladeira, Marilza dos Santos, Naira do Amaral, Endora e filhotes.

Câmera | camera 
Paulo Beto

Edição e pós-produção de vídeos | Editing and video pos-production
Ringo Giacobelis


Video 1 




Colagens conceituais para Vídeo 2





As máquinas de Desejo dos Contos de Fadas





"As histórias de fadas são a ligação mais visceral que temos 

com a imaginação de homens e mulheres cujos trabalhos criam nosso mundo."
Angela Carter


“Receie e fuja do lobo; porque, pior do que tudo, o lobo pode ser mais do que parece”, avisa o narrador de um dos contos de Angela Carter, escritora de estórias habitadas por donzelas que querem descobrir o seu lado selvagem, atraídas pelo desviante e pelo proibido, donas de um desejo complexo e transgressor. No ensaio The Sadeian Woman (1979) Carter define assim a condição feminina nos contos de fadas: “Ser objeto de desejo é ser definida pela voz passiva. Existir na voz passiva é morrer na voz passiva; ou seja, ser morta. Essa é a moral que o conto de fadas reserva para a mulher perfeita.”


O lado perverso e sombrio dos contos de fadas tornou-os ainda mais requisitados nas últimas décadas do século XX. Enquanto os contos clássicos estabeleciam modelos e padrões de conduta, suas releituras pós-modernas buscam explicitar e desmascarar seus mecanismos e artifícios. Desobedientes e subversivas, novas estórias revelam o que estava velado e implícito sob os moldes de bom comportamento cultivados por versões domesticadas e açucaradas dos contos clássicos.


Angela Carter em especial tornou-se nas últimas décadas uma referência obrigatória e símbolo da escrita pós-moderna e experimental. Suas estórias investem contra as boas mocinhas e a favor do talento corruptor das virgens. Versões contemporâneas do Barba Azul, Chapeuzinho Vermelho e A Bela e a Fera no livro ‘O Quarto do Barba Azul’ (1979) propõe heroínas que tomam consciência e assumem o próprio desejo. Carter explode o estereótipo dos contos de fadas como sistema fechado e estático, mobilizando os múltiplos e contraditórios simbolismos produzidos em diferentes contextos sociais e históricos. Se a Bela teve que aprender a ser uma esposa amorosa no século XVIII no final do século XX ela decidiu brincar com a Fera porque sua natureza selvagem a excitava, desvinculando sexo do amor.


Dentro de uma abordagem jungiana, Clarissa Pinkola Estes em ‘Mulheres que Correm com os Lobos’ enfatiza que os contos de fadas compreendem o drama da alma das mulheres, uma chave no caminho do auto conhecimento, promovendo extensas escavações psíquicas arqueológicas nas ruínas do mundo subterrâneo feminino. Ela recupera algumas versões esquecidas dos contos de fadas, compreendidas por ela como representações simbólicas de verdadeiros mapas iniciáticos em direção ao self da mulher selvagem.


Nesse sentido ela denuncia o processo histórico dos contos de fadas, de forma que se perderam muitos dos contos femininos que continham instruções sobre o sexo, o amor, o casamento, o parto, a morte, a transformação, que traziam mistérios antigos e rituais de iniciação. Da maioria das coletâneas dos contos de fadas e mitos hoje existentes foi eliminado tudo que fosse escatológico, sexual, perverso, iniciático.


Apesar de reconhecer os méritos da leitura arquetípica e psicanalítica dos contos de fadas, a pesquisadora britânica Marina Warner no livro ‘Da Fera à Loira’, propõe uma análise erudita sobre as circunstâncias históricas do surgimento dos contos de fadas e as motivações reais de seus narradores. Dessa forma ela mostra que se há elementos que efetivamente entrecruzam gerações e culturas diferentes, há outros que são enraizados em experiências humanas, associados a costumes sociais e contextos históricos e geográficos específicos, variando também seu significado. Com seu foco de interesse na representação da figura feminina nessas histórias, Marina Warner examina a misoginia de alguns dos mais célebres contos de fadas e a partir deles a própria evolução histórica do gênero em suas múltiplas possibilidades expressivas.


Conduzimos aqui um enfoque sobre a construção das personagens femininas nos contos de fadas. Nesse sentido, cabe ressaltar a natureza intrinsecamente ambígua desse contos passíveis de múltiplas interpretações, assumindo a posição de serem ao mesmo tempo uma clausura espiritual e um modelo de bom comportamento, fragilidade e submissão e por outro lado, um grito de guerra em seu poder de transformação e em seus impulsos emancipatórios. Em épocas e contextos diferentes as mesmas histórias podem suportar a ideologia dominante ou articular o desejo de mudança. Como máquinas do desejo, os contos de fadas reforçam as convenções e configuram máscaras e papéis sociais ao mesmo tempo que mostram múltiplas possibilidades de transformação e metamorfose.


Leitora de Lewis Carroll, Carter fez seu personagem no conto ‘Alice Lobo’, “atravessar o espelho e viver do outro lado das coisas”, assim como Marcel Duchamp disse uma vez que o artista, tal como Alice no País das Maravilhas, teria que atravessar o espelho da retina para alcançar uma expressão mais profunda.


Artistas contemporâneos têm se inspirado nos contos de fadas clássicos recriando essa matéria-prima através de uma manipulação política, erótica ou metalingüística. Reler contos conhecidos implica na urgência de novas questões, novas práticas e desejos, o que tem sido responsável pela formação de uma forte linhagem de releituras dos contos de fadas, através de artistas que se recusam a submeterem-se à autoridade das convenções e estereótipos, revisando os contos clássicos e deles se apropriando de forma poética.


O tema da Bela e a Fera já estava presente nos objetos surrealistas de Meret Oppenheim como Le Déjeuner en fourrure (1936, fig.1) onde uma xícara de chá, um pires e uma colher de pêlo de antílope tornam visíveis através de alusões eróticas a presença problemática do selvagem no seio do civilizado, o lugar do animal na sociedade e as amarras sociais da sexualidade.

    Meret Oppenheim, Le Déjeuner en fourrure, 1936

 Cindy Sherman ilustrou ‘O Pássaro de Fichter’ em um livro de contos de fadas para adultos, recuperando a violência do original dos irmãos Grimm, numa atmosfera de ameaça e crimes sexuais (1992, fig. 2). Através de montagens com bonecos de cera, plumas, cabelos e jóias criou fotografias simulando cenas de um filme de horror e suspense. Em ‘loop my loop’ (1991, fig. 3) a artista inglesa Helen Chadwick faz uma trança de cabelos loiros e brilhantes com tripas de porco, evidenciando o aspecto dual da sexualidade, questão central nos contos de fadas. Já a artista portuguesa radicada em Londres Paula Rego inspirou-se nas rimas infantis inglesas aparentemente ingênuas para explorar aspectos das fantasias femininas mais sinistros do que se admite e também conseguiu mexer com as profundezas psíquicas. (1989, fig.4)

As maravilhas e as monstruosidades, as botas de sete léguas e os espelhos encantados, os animais falantes, os heróis e heroínas transformados em sapos, ursos ou gatos, as estrelas na fronte da irmã boa e o surgimento de uma cauda de jumento na fronte da irmã malvada, todos os prodígios que criam a atmosfera dos contos de fadas desestruturam o mundo apreensível de modo a abrir espaços para alternativas oníricas, como salienta Marina Warner.


Segundo o crítico literário Northrop Frye, especialista em William Blake, não há idéias mortas em literatura, há apenas leitores cansados. Ler de novo como novas perguntas, apropriações e deslocamentos em novas mídias e suportes. Buscar no conhecido o desconhecido. 


Como disse um dia André Breton, 

“O que nos impede de misturar a ordem das palavras e com isso provocar um ataque à existência evidente das coisas?”


Cindy Sherman, Fichter's Bird, 1992

 Helen Chadwick, Loop my loop, 1991 


 Paula Rego, Nursery Rhymes, 1989



BIBLIOGRAFIA
BACCHILEGA, Cristina. Post Modern Fairy Tales: Gender and Narrative Strategies. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1997.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CARTER, Angela. O Quarto do Barba Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
CARTER, Angela. As Infernais Máquinas de Desejo do Dr. Hoffman. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com os Lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
SEXTON, Anne. Transformations. Boston: Houghton Mifflin Company, 1971.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira. Sobre Contos de Fadas e seus Narradores. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ZDENEK, Felix e Matin Scwander / editores. Cindy Sherman: Photographic Work: 1975 – 1995. Hamburg: Schimer Art Books, 1996.


Colagens de Adriana Peliano...





...sobre Claude Cahun, Rebecca Horn, etc.

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